23 de junho de 2011

« Se não morreu, está quase morto. Se não fizerem obras, morre mesmo. »

(Fotografia original por Ricardo Jorge Carvalho)

O Bolhão está velho. Ao fim de noventa e sete anos de existência, o mercado do Porto necessita de obras de reabilitação. Há dezoito anos que se tenta encontrar a solução ideal mas ainda nada foi feito. O dia-a-dia de quem vive as dificuldades e a controvérsia.

Os olhos de Dona Olga enchem-se, aos poucos, de lágrimas. Está a falar do passado. “Estou aqui desde os três dias. Tenho setenta e seis anos, veja aos anos que eu aqui estou. Não conheci outro emprego. Ia para a escola, da escola vinha para aqui, vinha ter com a minha mãe …”. Enquanto fala, não tira os olhos das flores que povoam a sua banca. O seu ténue perfume paira no ar e mistura-se com o odor de peixe fresco, de enchidos e até mesmo de animais. Cheira a Bolhão.

Dona Olga altera a sua expressão. Afirma, indignada, que “as obras nunca mais se fazem” e que sofre bastante, no Inverno, com o frio e com a chuva. Não culpa a crise pelo sucedido mas sim a falta de vontade dos que detêm o poder. Apesar das más condições, a florista tem de pagar 120€ por mês para continuar com o seu negócio. “Eu pago por esta barraca de ciganos vinte e quatro contos por mês. Sabe … eu falo em contos”.

Para qualquer lado que se olhe, encontram-se marcas de deterioração de um espaço que antigamente pertencia ao quotidiano de todos. Escorre água de fendas que se encontram nas paredes, fazendo com que o cinzento de um chão sujo, gasto, pareça ainda mais velho. Os comerciantes, maioritariamente do sexo feminino, vêem as suas bancas sem movimento. Uns estão sentados, outros de braços cruzados. Alguns arrumam os seus produtos, organizando tudo. As floristas retiram as folhas mortas às suas plantas, na esperança de que o seu ar viçoso convença algum apaixonado. Os pregões já praticamente não existem. As vendedeiras mais novas ainda arriscam dizê-los, de vez em quando, mas perdeu-se a vivacidade, a gana de outrora.

Dona Luísa também lamenta o estado deteriorado do mercado. Toucinheira há mais de quarenta anos, assegura que Rui Rio - actual presidente da Câmara Municipal do Porto - não informa os comerciantes das suas decisões, no que diz respeito à reabilitação do espaço. “O centro comercial não foi avante porque fizemos pressão, fizemo-lo ver que isso não tinha assunto e ele, de birra, agora anda aí a fazer uns buracos, andam aí uns engenheiros … Andam aí a fazer uns buracos para ver se isto aguenta ou não com as obras”. As escoras marcam firmemente o espaço que ladeia a barraca da Dona Luísa. São um sinal de necessidade, de uma urgência adiada, tanto que as próprias protecções já se encontram enferrujadas. Dona Luísa queixa-se, agora, do negócio. Hoje em dia, o Bolhão recebe mais turistas que clientes, pois só os compradores que ainda depositam confiança nos produtos do mercado é que se mantêm fiéis. Porém, os turistas não dão muito lucro: “Alguns ainda compram alguma coisa, gostam muito de linguiça, de comprar uma chouricita, uma morcelita …”. A toucinheira, que seguiu os passos da avó, não parece importar-se muito com isso. Gosta de ver os estrangeiros e acha piada às suas visitas, à curiosidade de quem não é de cá. “À hora de almoço aquelas mesas estão cheias de turistas. Os guias já nos cumprimentam, já nos conhecem. Eles vêm para aqui, gostam de ver a tripa enfarinhada, a orelheira, coisas que não têm lá nos outros países. Perguntam para que serve o sangue e as tripas … São tradições, cada terra tem as suas”.

O Sol já está a ir embora e os comerciantes fazem as suas últimas vendas. Susana Garcia está a comprar fruta numa banca de reduzidas dimensões. A vendedeira sorri, trata-a com uma extrema simpatia. É cliente habitual e está com pressa. Tem cerca de vinte e cinco anos e continua a frequentar o Bolhão porque gosta do ambiente. Susana prefere o mercado tradicional às grandes superfícies comerciais: “as coisas são mais frescas, têm outro aspecto”. Fala, voz penosa, do ar apodrecido do mercado. Há algum tempo, ouviu falar dos projectos de reabilitação que a Câmara do Porto tinha em mente. Porém, foi deixando de ouvir falar deles, de forma gradual, não esquecendo o projecto da TramCronNe de transformar o Bolhão num centro comercial de luxo, com classe para ter um Majestic no seu interior. Para tal, todo o miolo do mercado deveria ser demolido. Na opinião de Susana, a tradição devia ser mantida. Diz isto com afinco, segura de si. Parece-lhe uma aberração que assim não seja e torce para que o Bolhão recupere o seu esplendor.

Nos corredores quase não há vozes. As vendedoras arrumam as suas bancas. Foi mais um dia. Os seus rostos não denotam alegria nem tristeza, apenas uma expressão neutra. Tudo tem de estar preparado para mais um dia.

Os torneados, típicos do século XX, acompanham lateralmente a escadaria que, apesar de gasta, mantém a sumptuosidade. Dá acesso ao piso superior que poucos visitam. Menos de uma dúzia de comerciantes ainda se encontram lá instalados. Vendem fruta e legumes e já têm tudo quase arrumado. Dona Virgínia arrasta um balde velho, com pequenos furos, carregado de folhas de couve e de fruta em mau estado. Esteve a preparar a sua banca para o dia seguinte. Aos olhos da Dona Virgínia, o Bolhão terá morte certa se não se fizerem obras. Apesar de o mercado estar povoado por escoras, a vendedeira afirma que o edifício não está em risco de ruir: “Isto não está a cair, não vale a pena a gente dizer aquilo que não é. Já puseram aqui grandes pesos para ver se ruía alguma coisa e não ruiu nada. Seguro está, precisa é de obras”. Dona Virgínia trabalha no Bolhão há trinta e dois anos e diz que “não sai da cepa torta” pois o negócio está cada vez pior e a situação degradada do mercado não ajuda. Por fim, afirma com afinco: “já houve tempos melhores, dantes havia muito movimento. O mal todo foi os shoppings e o Pingo Doce aqui mesmo em frente. E o problema maior é não haver estacionamento. Já estamos há cinco anos com estes tratantes aqui e nada de obras”.

O portão da entrada principal encontra-se, agora, semi-fechado. Dois seguranças estão à porta, à espera que as últimas pessoas abandonem o recinto. Está quase tudo arrumado. Tudo, menos a bandeira portuguesa que está presa ao tecto do corredor central e que continua a movimentar-se ao sabor da brisa portuense.

13 comentários:

Say Cheese disse...

ahah, acredito querida :o

Catarina Luna disse...

adoreeei este trabalho. gostei imenso da maneira como descreveste cada pormenor.
ainda não sei, Luísa. tenho tentado não pensar, até porque agora quero concentrar-me para história. sou pessimista, muito mesmo.

Anónimo disse...

Obrigada :3
A sério? Oh, também gosto muito das tuas, costumo ver o teu "olhares" :)

Marisa Ventura disse...

bem preciso, obrigada

Say Cheese disse...

oh, claro que consegues querida. quando são os nossos, é diferente :)

Marisa Ventura disse...

obrigada pelos elogios e pela força, meu amor!

Say Cheese disse...

é mesmo minha querida! eles são o melhor da vida $:

• cláudiagomes disse...

fogo, o nosso lindo bolhão :cc

Anónimo disse...

És uma querida *-*

dianafilipa. disse...

e eu segui em frente, deixei o passado para trás das costas acredita querida ! $:

gostei imenso, gosto mesmo a tua maneira de escrever a sério ! *-*

zoey disse...

O Porto é simplesmente fantástico :)

Catarina Luna disse...

espero, Luísa. não quero ter más surpresas.

• cláudiagomes disse...

Pode ser que façam obras. há que ter esperança.