3 de junho de 2010

Dactilografia

Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
                                 Firmo o projeto, aqui isolado,
                            Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O t i q u e-t a q u e estalado das máquinas de escrever.

Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que s
         o
           n
              o este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.
O
   u
     t
       r
        o
          r
            a.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra ...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o t i q u e-t a q u e estalado das máquinas de escrever.


Álvaro de Campos, in "Poemas"

4 comentários:

Bernardo disse...

Acho muito bom mesmo :D

Continua

Blog do Verão disse...

Gostei do blog! ;)

passa também por: http://blogdoverao.blogspot.com/

e vive este verão ao máximo! :)

APROVEITEM!

Andreia Morais disse...

este é um dos poemas que mais gosto :D

- beijinhos

jorge alte disse...

Todos gostariamos de viver nos sonhos puros da inocente infância onde somos nós onde vivemos. De facto a vida real é egoísta e cobra-nos constantemente o pouco que nos dá remetendo-nos quando já está farta de nós para esse caixão onde vive a morte

De facto este poema é deveras lindo.
Bem escolhido obrigado

jorge d'alte