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31 de agosto de 2011

Crescer

Odiava a noite. Era um castigo ter que adormecer. Por isso, lavava os dentes e a cara muito calmamente e tomava um copo de leite quente para ter a sensação falsa de conforto e de segurança. Antes entrar na cama, espreitava para debaixo da mesma. Olhava cautelosamente para todo o espaço circundante. Acreditava piamente que quem provocava todas as coisas más eram monstros que se escondiam debaixo da cama das pessoas. Após uma exaustiva verificação, deitava-se e enroscava-se muito bem nos cobertores para se sentir protegido. No entanto, ficava estarrecido a olhar para a janela e para as sombras que as árvores faziam espontaneamente assim que o vento soprava. Adormecia por exaustão e, nos seus sonhos, estava a salvo. Não havia maldade, nem monstros, nem revoltas. Havia apenas um universo paralelo tecido pela ilusão e pela inocência de quem ainda teve pouco tempo para explorar o verbo "viver".
Tudo isto acabou quando ele finalmente percebeu que os monstros não moram debaixo das camas.
Moram dentro de nós.

17 de agosto de 2011

metamórphosis.

"Acabei" - disse ela para si mesma, com orgulho. O quadro finalmente estava pronto e correspondia àquilo com que ela havia sonhado. Resumindo, estava perfeito. O Sol entrava alegremente pela janela e o vento afastava, de forma tímida e leve, a cortina de cor pérola. Via-se pó no ar e sentia-se o cheiro de tinta fresca. Sentada num banco velho, de madeira, estava ela, contemplando a sua obra de arte. Os seus olhos espelhavam a satisfação que a alma sentia e ia esboçando sorrisos tolos. Estava feliz. A meta havia sido cortada, o troféu era dela, o pódio também. Como é bom sentir o sabor da glória.
Contudo, em poucos minutos a felicidade tinha partido para um lugar distante e duas lágrimas grossas caíam, de par em par. Dona de um sorriso desbotado, os seus olhos pareciam rodeados por uma camada grossa de tinta da china, que escorria; o seu tom de pele havia perdido a vitalidade natural e agora era pálido como a neve gelada.
Desequilibra-se do banco e fica no chão, imóvel, a assistir ao passar do tempo na esperança de que as horas lhe levassem os estilhaços de uma alma lacerada pela angústia, pela incerteza, pela ausência.
Sempre que ela se olhava ao espelho, não se reconhecia. Tinha-se perdido no labirinto do seu interior e já não sabia como encontrar a saída. Talvez porque a saída se fechou. Talvez porque já não há caminho de regresso. Talvez porque só uma pessoa a pode tirar do chão, abraçá-la e abrir-lhe a porta que ela própria não encontra. 
Se isso acontecer, ela vai sorrir de novo, vai correr pelo campo de feno e encher o cabelo com flores de mil cores. A porta que teima em fechar-se vai ser destruída. O verbo "sorrir" passará a integrar o seu quotidiano e juntar-se-à ao verbo "amar", o único que nunca a abandonou.

11 de julho de 2011

insónia.

Mente controversa, cheia de questões e incertezas. A insónia tem sido uma constante; tem fitado o escuro na procura de contornos, de formas, de soluções. Na noite tem tentado encontrar a luz, em vão. E vira-se para um lado e para o outro. Leva as mãos à cara, esfrega-a inúmeras vezes, sente os olhos inchados, doridos. Isto já é uma rotina. Enrola o lençol contra si, com força, na tentativa de se sentir segura, confortável, em vão. A solidão pesa na atmosfera, o negrume torna tudo mais frio, mais triste, mais instável. O pensamento continua revolto, vagueando em círculos. As horas avançam, a vida é que não. O tempo passa, a vida também. No ar ecoa o tique-taque do relógio. O desespero continua. Nesta altura, outros devem estar a sonhar, num universo paralelo. Ela já nem sabe muito bem o que isso significa. Apenas sabe o que é querer voar e não ter asas - e ter de viver com isso. As lágrimas caem, uma após a outra. Os dentes mordem com força os lábios. Tudo poderia ter sido diferente.
Chegou a hora pela qual ela sempre mais anseia - a hora de levantar. Até logo insónia. Despe-se com nojo. Vai para o duche. Água gelada cai em cima da cabeça baixa. A água lava tudo.
As típicas calças de ganga rotas, gastas. É só bater a porta e ir para a rua, o mundo está pronto para vê-la. Ela é que não consegues encará-lo, interpreta cada olhar como uma injúria, um julgamento e por isso não caminha de cabeça erguida. O caminho já está memorizado. Ela está em modo automático. Já nem olha para os dois lados da estrada e por isso os carros apitam e gritam palavras que já não ouve.
O vento sopra bem junto a ela, tenta envolvê-la. Mas ela já nem sabe o que é saborear a brisa do vento.
De repente, pára de andar.
Olha em frente.
Há que seguir uma nova direcção, um novo rumo onde a insónia, as lágrimas ou o medo não terão lugar.
Ela sorri. E volta a sorrir.
Volta para casa, abre todas as janelas, deixando sair o ar pouco oxigenado. Abre o armário bruscamente. Atira a sua roupa para uma mala enquanto rodopia ao som da música do seu leitor de CD's empoeirado.
É hora de partir para um novo lugar.
Recomeçar.